sábado, 14 de agosto de 2010

Arqueologia do Saber: As Regularidades Discursivas (Parte 1)

_RESUMO_

FOUCAULT, M. As Regularidades Discursivas. In: ________. A Arqueologia do Saber. Trad. Luiz Felipe Baeta Neves. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008. pp. 21-85.

As Unidades do Discurso:

Proposta inicial do capítulo: criticar as noções que organizam os saberes pela continuidade, permanência e originalidade.

“Há, em primeiro lugar, um trabalho negativo a ser realizado: libertar-se de todo um jogo de noções que diversificam, cada uma à sua maneira, o tema da continuidade. Elas, sem dúvida, não tem uma estrutura conceitual bastante rigorosa: mas sua função é precisa” (2008, p. 23)

Noções criticadas por Foucault por corroborarem com o tema da continuidade: tradição, influência, desenvolvimento e evolução, mentalidade e espírito de uma época, livro, obra, autor, temas da origem e do já-dito.

A suspensão do tema da continuidade permite-nos vislumbrar uma dispersão de acontecimentos discursivos. Cabe ao analista restituir-lhes a unidade evidenciando uma regularidade entre os mesmos:

“Uma vez suspensas essas formas imediatas de continuidade, todo um domínio encontra-se, de fato, liberado. Trata-se de um domínio imenso, mas que se pode definir: é constituído pelo conjunto de todos os enunciados efetivos (quer tenham sido falados ou escritos), em sua dispersão de acontecimentos e na instância própria de cada um. Antes de se ocupar, com toda certeza, de uma ciência, ou de romances, ou de discursos políticos, ou da obra de um autor, ou mesmo de um livro, o material que temos a tratar, em sua neutralidade inicial, é uma população de acontecimentos no espaço do discurso em geral” (2008, p. 29-30).

As Formações Discursivas

Proposta inicial do capítulo: definir a “relações que podem ser legitimamente descritas entre esses enunciados, deixados em seu grupamento provisório e visível” (2008, p. 35).

A partir daí, o autor lança quatro hipóteses sobre as propriedades que evidenciam, entre os enunciados, laços e relações que não sejam justificáveis pelas unidades já colocadas em suspenso.

1ª hipótese: os enunciados se agrupam a partir do objeto ao qual se referem. Há enunciados que “[...] diferentes em sua forma, dispersos no tempo, formam um conjunto quando se referem a um único e mesmo objeto” (2008, p. 36).

A existência dos objetos é dada pelo como como os enunciados os recortam. Não existem objetos dados a priori e que, assim, consituem a existência dos discursos. Foucault nos lembra que “[...] a doença mental foi constituída pelo conjunto do que foi dito no grupo de todos os enunciados que a nomeavam, recortavam, descreviam, explicavam, contavam seus desenvolvimentos, indicavam suas diversas correlações, julgavam-na e, eventualmente, emprestavam-lhe a palavra, articulando em seu nome, discursos que deviam passar por seus” (2008, 36).

2ª hipótese: os enunciados se agrupam segundo a forma e o tipo de encadeamento destes enunciados. Na retomada que Foucault faz de suas reflexões em O Nascimento da Clínica, ele nos mostra que houve épocas em que os enunciados médicos provinham de “[...] um corpus de conhecimentos que supunha uma mesma visão das coisas, um mesmo esquadrinhamento do campo perceptivo, uma mesma análise do fato patológico segundo o espaço visível do corpo, um mesmo sistema de transcrição do que se percebe no que se diz (mesmo vocabulário, mesmo jogo de metáforas)” (2008, p. 38).

Esse tipo de encadeamento não funciona, contudo, de modo contínuo. Para Foucault, “[...] Se há unidade, o princípio não é, pois, uma forma determinada de enunciados” (2008, p. 38), mas um conjunto de regras que torna possível, simultaneamente, “[...] descrições puramente perceptivas, mas, também, observações tornadas mediatas por instrumentos, protocolos de experiências de laboratórios, cálculos estatísticos, constatações epidemiológicas ou demográficas, regulamentações institucionais, prescrições terapêuticas” (2008, pp. 38-9)

3ª hipótese: os enunciados podem ser agrupados segundo o sistema dos conceitos permanentes e coerentes que se encontra em jogo num conjunto de enunciados. Contudo, Foucault mostra que muitos conceitos dados em uma mesma unidade de enunciados podem ser dessemelhantes entre si e até mesmo incompatíveis, tendo em vista os saberes que os entrecortam em certo momento da história. Conforme diz Foucault, “[...] talvez fosse descoberta uma unidade discursiva se a buscássemos não na coerência dos conceitos, mas em sua emergência simultânea ou sucessiva, em seu afastamento, na distância que os separa e, eventualmente, em sua incompatibilidade” (Ibidem, p. 40). Se assim o fizéssemos, “[...] Não buscaríamos mais, então, uma arquitetura de conceitos suficientemente gerais e abstratos para explicar todos os outros e introduzi-los no mesmo edifício dedutivo; tentaríamos analisar o jogo de seus aparecimentos e de sua dispersão” (2008, p. 40).

4ª hipótese: diz respeito às estratégias que, por meio da dispersão dos pontos de escolha, definem diferentes olhares e posicionamentos sobre um mesmo tema. Contudo, Foucault nos mostra, a partir daí, que há outras estratégias discursivas que trabalham de forma tangencial àquilo que está no eixo das continuidades. Assim, as escolhas temáticas que definem um objeto se mostram tanto dispersas quanto diversas e diversificadas, indicando diferentes parâmetros de existência de um objeto numa mesma época (o que pode nos remeter às múltiplas temporalidades): alguns deles são autorizados e validados, outros se localizam nas margens do dizível e são, por isso, clandestinos e ilegais; entretanto, não se pode negar que eles existam, rompam enquanto acontecimentos discursivos e eclodam na massa contínua dos agrupamentos discursivos dados como estáveis.

Formação Discursiva: As formações discursivas seriam, pois, essa regularidade que pode ser descrita no caso em que, entre os enunciados, vislumbre-se o funcionamento de um sistema de dispersão, sistema esse que compreende “[...] os objetos, os tipos de enunciação, os conceitos, [e] as escolhas temáticas” (2008, p. 43) e a partir do qual se é possível conceber “[...] uma ordem, correlações, posições e funcionamentos, transformações” (2008, p. 43).