GENEALOGIA E PODER
Michel Foucault
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Orientação: Prof. Dr. Pedro Navarro
Organização: Rafael Andrade Moreira
E-mail: r.andrademoreira@gmail.com
No
curso proferido no dia 07 de janeiro de 1976, no Collège de France, Michel
Foucault começa sua aula explicando que gostaria de concluir uma série de
pesquisas que acabaram acumulando alguns inconvenientes. Segundo o filósofo,
essas pesquisas tinham se tornado por demais repetitivas e dispersas, seguindo
os mesmos caminhos, caindo e retomando os mesmos temas e conceitos. Temas como
a história do procedimento penal, a evolução e institucionalização da
psiquiatria no século XIX, a história da sexualidade, acabaram, segundo
Foucault, se arrastando, se repetindo e não se articulando. A esse trabalho
fragmentário, repetitivo e descontínuo, o próprio autor chamou-lhe de “preguiça
febril” (FOUCAULT, 2012, p. 263). Essa “preguiça febril”, por suas próprias
palavras, seria aquela que afeta pesquisadores amantes de bibliotecas, documentos,
escritos empoeirados e textos nunca lidos. “Pesquisas que conviria muito bem a
inércia profunda dos que professam um saber inútil, uma espécie de saber
suntuoso, uma riqueza de novos-ricos cujos signos exteriores estão localizados
nas notas de pé de página” (FOUCAULT, 2012, p. 263).
Porém,
para o autor de Vigiar e Punir, não
foi só o gosto por essa “maçonaria” que acabou o levando a fazer suas
pesquisas. Num período de dez a vinte anos, Foucault acabou notando dois
fenômenos de extrema importância. O primeiro o chamou de eficácia das ofensivas dispersas e descontínuas. Para explicar esse
fenômeno, o autor considera a estranha eficácia do funcionamento da instituição
psiquiátrica, dos discursos da antipsiquiatria,
dos discursos sem uma sistematização global, aplicados à inicial análise
existencial, ao marxismo e à teoria de Reich. Por outro lado, considerou
também, a estranha eficácia dos ataques contra a moral, a hierarquia
tradicional, o aparelho judiciário e penal. De acordo com Foucault (2012), assistimos
há dez ou quinze anos uma imensa proliferação de críticas das coisas, das
instituições, das práticas e dos discursos. Foucault chamou essas
características que se passou nesses anos de o caráter local da crítica. Em suas próprias palavras,
O caráter essencialmente
local da crítica indica na realidade algo que seria uma espécie de produção
teórica autônoma, não centralizada, isto é, que não tem necessidade, para
estabelecer sua validade, da concordância de um sistema comum. (FOUCAULT, 2012,
p. 263).
No segundo fenômeno,
Foucault explica que essa crítica local se efetuou por meio do que chamou de um
retorno de saber. Por “retorno de saber”, o pesquisador francês entende que
durante os últimos anos encontrou-se toda uma temática que contemplava mais a
vida e não mais o saber, mais o real e não mais o conhecimento. Por causa
disso, o que se produziu é o que o filósofo chamou de insurreição dos saberes dominados. Neste ponto, Foucault vai
explicar que por saber dominado entende
duas coisas. Por um lado, seriam os conteúdos históricos que foram calados,
sepultados, mascarados em sistematizações funcionais e formais. Em suas
palavras,
Os saberes dominados são blocos de
saber histórico que estavam presentes e mascarados no interior dos conjuntos
funcionais e sistemáticos e que a crítica pode fazer reaparecer, evidentemente
por meio do instrumento de erudição. (FOUCAULT, 2012, p. 266).
Por
outro lado, por saber dominado Foucault
também vai entender uma série de saberes tidos como desqualificados, como não
competentes, insuficientemente elaborados. Saberes hierarquicamente inferiores,
considerados abaixo do nível de conhecimentos requeridos, por exemplo, pela
ciência. Para Foucault (2012), foi o reaparecimento desses saberes não
qualificados – que ele chamou de saber das pessoas, que ao contrário de um
saber comum é um saber particular, regional, local, um saber diferencial – que
acabaram realizando a crítica. “Foi o acoplamento entre o saber sem vida da
erudição e o saber desqualificado pela hierarquia dos conhecimentos e das
ciências que deu à crítica dos últimos anos sua força essencial” (Foucault,
2012, p. 267).
Neste
caso, tanto o saber da erudição quanto os desqualificados, Foucault nos ensina
que se trata na realidade de um saber histórico da luta. “Nos domínios
especializados da erudição como nos saberes desqualificados das pessoas, jazia
a memória dos combates, exatamente aquela que até então tinha sido subordinada”
(Foucault, 2012, p. 267). Dessa forma acabou se delineando o que o autor chamou
de genealogia ou pesquisas genealógicas múltiplas, ao mesmo tempo em que se
provocava uma redescoberta das lutas e memórias brutas dos combates. E esse
acoplamento só seria possível, segundo o filósofo, se considerasse eliminada a
supremacia dos discursos englobantes com suas hierarquias e privilégios.
Foucault
chama de genealogia o acoplamento dos conhecimentos com as memórias locais, o
que acaba possibilitando consolidar um saber histórico das lutas e sua
utilização nas táticas atuais. Assim, para o pesquisador francês,
Trata-se de ativar saberes
locais, descontínuos, desqualificados, não legitimados, contra a instância
teórica unitária que pretenderia depurá-los, hierarquiza-los, ordená-los em
nome de um conhecimento verdadeiro, em nome dos direitos de uma ciência detida
por alguns. (FOUCAULT, 2012, p. 268).
Vale ressaltar que para
Foucault as genealogias não são retornos positivistas a uma forma de ciência,
mais atenta e mais exata, e sim um tipo de anticiência.
Trata-se de uma insurreição dos saberes não contra os conteúdos, “mas de uma
insurreição dos saberes antes de tudo contra os efeitos de poder
centralizadores” (FOUCAULT, 268, p. 268). Dessa forma, a genealogia deve
combater as superioridades impostas, por exemplo, pelo discurso tido como
científico, pouco importando se a institucionalização desse discurso se faz nas
universidades ou nos aparelhos políticos.
Para
Foucault (2012), em reposta a uma série de dúvidas sobre o marxismo ser ou não uma
ciência, o genealogista vai provocar um pensar diferente. Antes mesmo de saber
em que medida o marxismo seria, de fato, uma ciência, com suas práticas,
conceitos e regras de construção, seria mais interessante questionar sobre a
ambição de poder que a pretensão de ser uma ciência traz consigo. Dai que,
As questões a colocar são:
que tipo de saber vocês querem desqualificar no momento em que vocês dizem “é
uma ciência”? Que sujeito falante, que sujeito de experiência ou de saber vocês
querem “memorizar” quando dizem: “Eu que formulo esse discurso, enuncio um
discurso científico e sou um cientista”? Qual vanguarda teórico-política vocês
querem entronizar para separá-la de todas as numerosas, circulantes e
descontínuas formas de saber? (FOUCAULT, 2012, p. 269).
Segundo Foucault (2012),
quando se vê os esforços para estabelecer o marxismo como uma ciência, não os
veríamos demonstrando que o marxismo teria uma estrutura racional e que suas
proposições revelariam procedimentos de verificação. Na verdade, pensa o
filósofo, o que aconteceria é que ao discurso marxista e àqueles que o detêm
seriam atribuídos “efeitos de poder que o Ocidente, a partir da Idade Média,
atribuiu à ciência e reservou àqueles que formulam um discurso científico”
(FOUCAULT, 2012, p. 269). Dessa forma, para Foucault, a genealogia seria um
empreendimento de luta para libertar da sujeição os saberes históricos. Isto é,
torná-los capazes de oposição e de luta contra a coerção de um discurso
teórico, unitário, formal e científico. Assim, “A reativação dos saberes locais
– menores, diria talvez Deleuze – contra a hierarquização científica do
conhecimento e seus efeitos intrínsecos de poder, eis o projeto dessas
genealogias desordenadas e fragmentárias” (FOUCAULT, 2012, p. 270).
Diante
de todos esses “fragmentos” de pesquisas, que Foucault faz questão de ressaltar
que não foi o único a fazer, ele lança uma pergunta: “Por que então não
continuar com uma teoria da descontinuidade [...] por que não analisar um novo
problema da psiquiatria ou da teoria da sexualidade etc?” (Foucault, 2012, p.
270). Para tentar responder tal questão, Foucault vai explicar que poderia (e
procuraria) sim continuar com as pesquisas se não fossem umas séries de
mudanças na conjuntura. Para ele,
Em relação à situação que
conhecemos nos últimos quinze anos, as coisas provavelmente mudaram; a batalha
talvez não seja mais a mesma. Existiria ainda a mesma relação de força que
permitiria fazer prevalecer, fora de qualquer relação de sujeição, esses
saberes desenterrados? Que força eles têm? E, a partir do momento em que se
extraem fragmentos da genealogia e se coloca em circulação esses elementos de
saber que se procurou desenterrar, não correm eles o risco de serem
recodificados, recolonizados pelo discurso unitário que, depois de tê-los
desqualificados e ignorados quando apareceram, estão agora prontos a anexá-los
ao seu discurso e a seus efeitos de saber e de poder? (FOUCAULT, 2012, p.
270-271).
Foucault (2012) explica
que de fato esses fragmentos de genealogias permanecem cercados por um
silêncio. Para ele, o silêncio que cerca a genealogia dos saberes seria uma
razão para continuar as pesquisas. Preocupado em não transformar a genealogia
em um fundamento teórico contínuo e sólido, Foucault vai evidenciar que o
problema que está em jogo, nessas oposições e nessas lutas, nessa insurreição
dos saberes contra as instituições, é a questão do como pensar o poder. O que é
o poder, para Foucault, não seria uma das melhores formas de se pensá-lo, pois
“a questão o que é o poder seria uma questão teórica que coroaria o conjunto”
(Foucault, 2012, p. 272). Na esteira do seu pensamento, deve-se procurar pensar
quais são os mecanismos do poder, seus efeitos, seus diversos dispositivos que
se exercem em níveis variados da sociedade. Para Foucault, a questão a ser
formulada seria do tipo: “a análise do poder ou dos poderes pode ser, de uma
maneira ou de outra, deduzida da economia?” (FOUCAULT, 2012, p. 272). Dessa
forma, para o filósofo, a concepção jurídica ou liberal do poder político
(século XVIII) e a concepção marxista possui um ponto em comum. A esse ponto,
ele o chamou de o economicismo na teoria
do poder. Com isso, Foucault vai dizer que,
No caso da teoria jurídica
clássica, o poder é considerado como um direito de que se seria possuidor como
um bem e que se poderia por conseguinte, transferir ou alienar, total ou
parcialmente, por um ato jurídico ou um ato fundador de direito, que seria da
ordem da cessão ou do contrato (2012, p. 272-273).
Seguindo essa linha de
raciocínio, o poder seria um poder concreto que cada indivíduo poderia deter e
que cederia, total ou parcial, para a constituição de um poder político, para a
construção de uma soberania política. Para Foucault, nesse conjunto teórico, a
constituição do poder político funcionaria como um modelo de uma operação
jurídica, da ordem da troca contratual. Já na concepção marxista, o que vai
existir é uma funcionalidade econômica do
poder. Funcionalidade que o poder teria como papel “manter relações de
produção e reproduzir uma dominação de classe que o desenvolvimento e uma
modalidade própria da apropriação das forças produtivas tornaram possível”
(FOUCAULT, 2012, p. 273). De modo geral, para o filósofo francês, teríamos um
poder político que encontraria, por exemplo, no procedimento de troca e na
circulação de bens, o seu modelo formal. Por outro lado, haveria uma poder
político que encontraria na economia sua razão de ser histórica em seus
princípios e em seus funcionamentos atuais. Partindo disso, Foucault se
colocará outras questões:
Em primeiro lugar, o poder está sempre em posição
secundária em relação à economia, ele é sempre “finalizado” e “funcionalizado”
pela economia? Tem essencialmente como razão de ser e fim servir a economia,
está destinado a fazê-la funcionar, a solidificar, manter e reproduzir as
relações que são características dessa economia e essenciais ao seu funcionamento?
Em segundo lugar, o poder é modelado pela mercadoria, por algo que se possui,
se adquire, se cede por contrato ou por força, que se aliena ou se recupera,
que circula, que herda esta ou aquela região? Ou, ao contrário, os instrumentos
necessários para analisá-los são diversos, mesmo se efetivamente as relações de
poder estão profundamente intrincadas nas e com as relações econômicas e sempre
constituem com elas um feixe? (FOUCAULT, 2012, p. 273-274).
Dessa forma, Foucault vai
falar que a indissociabilidade da economia e do político não seria nem da ordem
da subordinação funcional, e nem do isomorfismo, mas outra ordem que se faria
necessário explicar. Para isso, o autor pergunta de quais instrumentos dispomos
hoje para se fazer uma análise não econômica do poder. E respondendo a tal
questionamento, ele explica que dispomos da afirmação de que o poder não se
concede, não se troca e muito menos se retoma. O poder simplesmente se exerce.
O poder não é manutenção e reprodução das relações econômicas, mas acima de
tudo ele é uma relação de força. Dai surge mais um questionamento importante:
“se o poder se exerce, o que é esse exercício, em que consiste, qual é sua
mecânica?” (FOUCAULT, 2012, p. 274).
Uma
primeira resposta, segundo Foucault, estaria no fato de se conhecer o poder
como sendo essencialmente repressivo. “O poder é o que reprime a natureza, os
indivíduos, os instintos, uma classe” (FOUCAULT, 2012, p. 274). Seguindo esse
raciocínio, o autor se questiona se não deveria então a análise do poder ser
uma análise dos mecanismos repressivos. Uma segunda resposta, ainda de acordo
com o filósofo, seria ao invés de analisar o poder como sendo um tipo de
desdobramento de uma relação de força, ele fosse analisado acima de tudo em
termos de combate, de confronto e de guerra. Haveria assim, portanto, “ante a
primeira hipótese, que afirma que o mecanismo do poder é fundamentalmente de
tipo repressivo, uma segunda hipótese que afirma que o poder é guerra, guerra
prolongada por outros meios” (FOUCAULT, 212, p. 275). De acordo com Foucault
(2012), isso resultará em três coisas: A primeira seria que as relações de
poder nas sociedades teriam por base uma relação de força estabelecida, em um
momento histórico determinado, na guerra e pela guerra. A segunda seria que no
interior da paz civil, as lutas políticas, os confrontos a respeito do poder
deveriam ser interpretados apenas como continuações da guerra. E a terceira
seria que a decisão final só poderia vir da guerra. “O final da política seria
a última batalha, isto é, só a última batalha suspenderia finalmente o
exercício do poder como guerra prolongada” (FOUCAULT, 2012, p. 276).
Para
Foucault (2012), ao se escapar de uma análise “economicista” do poder,
obrigatoriamente caímos em presença de duas hipóteses: Uma que contempla o
mecanismo do poder como sendo do tipo repressivo (hipótese de Reich); Outra que
contempla a base das relações de poder como sendo um confronto belicoso das
forças (hipótese de Nietzsche). Para o teórico, essas duas hipóteses parecem se
articular e, diante disso, obrigatoriamente, ele se coloca mais uma pergunta:
“Não seria a repressão a consequência política da guerra, assim como a
opressão, na teoria clássica do direito político, era, na ordem jurídica, o
abuso da soberania?” (FOUCAULT, 2012, p. 276).
Por
fim, diante dessas duas hipóteses, Foucault (2012) considera que se pode pensar
assim em dois grandes sistemas de análise do poder. Um seria o antigo sistema
dos filósofos do século XVIII, que se baseavam em torno do poder como direito,
constitutivo da soberania, que se cede, tendo como matriz o contrato. O outro
seria tentar analisar o poder político não mais pelo viés do contrato-opressão,
e sim como sendo um esquema de guerra-repressão. “A repressão não seria mais o
que era a opressão com respeito ao contrato, isto é, um abuso, mas, ao
contrário, o simples efeito e a simples continuação de uma relação de
dominação” (FOUCAULT, 2012, p. 276-277). Assim, para Michel Foucault, esses
eram os dois esquemas de análise do poder que daria continuidade em seus
próximos cursos. O esquema contrato-repressão,
que seria jurídico, e o esquema dominação-repressão,
ou guerra-repressão, que estaria
entre a luta e a submissão.
Referências
FOUCAULT, Michel. Genealogia e Poder. In: Foucault,
Michel. Microfísica do poder.
Organização, introdução e revisão técnica de Roberto Machado. 25ª ed. São
Paulo: Graal, 2012.