__________________________________
VERDADE E PODER
Michel Foucault
_________________________________
Orientação: Prof. Dr. Pedro Navarro
Organização: Rafael Andrade Moreira
E-mail: r.andrademoreira@gmail.com
Nesta entrevista, publicada no livro
Microfísica do poder, Michel Foucault
irá tratar da relação entre verdade, poder e discurso. A problemática que guia
o filósofo em seus estudos, nos anos de 1950-55, se baseia no problema do
estatuto político da ciência e as funções ideológicas que podiam veicular. As
palavras que resumiam essa perspectiva eram saber e poder.
Tomando um saber como a psiquiatria,
em contraposição a física teórica ou a química orgânica, Foucault alerta que
não poderíamos, em relação a esse campo do conhecimento, apreender de forma
segura o entrelaçamento dos efeitos de poder e saber. Em o Nascimento da clínica a mesma questão foi posta.
Em suas palavras, a medicina “certamente possui uma estrutura muito mais sólida
do que a psiquiatria, mas também está enraizada profundamente nas estruturas
sociais” (FOUCAULT, 2012, p. 36).
Se atentando para esse fato, Foucault
vai explicar que em certos saberes, como a biologia, a economia política, a
psiquiatria e a medicina, os ritmos das transformações não obedeciam aos
esquemas suaves e contínuos de desenvolvimento que normalmente se admitia.
Diante disso, o seu problema não era a consideração da perpetuação da
descontinuidade, em que se poderia ficar nela, mas como seria possível, em
certos momentos e em certas ordens de saber, mudanças bruscas, precipitações de
evolução que não corresponderiam às imagens tranquilas das continuidades. Para
o filósofo o que está em questão não será o que rege os enunciados e a forma como eles se regem entre si para constituir um conjunto de proposições
aceitáveis e suscetíveis de serem verificadas por procedimentos científicos. A
questão não será a de saber qual seria o poder que agiria do exterior sobre a
ciência, e sim quais os efeitos de poder que circulariam entre os enunciados
científicos.
Dessa problemática dos efeitos de poder, que derivam de uma
rede discursiva, Foucault vai considerar o conceito de acontecimento. Para ele,
ao se tratar do acontecimento, temos um problema em distingui-los: diferenciar
as redes e os níveis a que pertencem e reconstituir os fios que os ligam e que
fazem com que se engendrem uns aos outros. Para o autor de arqueologia do saber, as relações de sentidos, nesse caso,
passariam a ser consideradas não como relações de sentidos, e sim como
belicosas. Em suas próprias palavras,
Creio que aquilo que deve ter como referência não é o
grande modelo da língua e dos signos, mas sim da guerra e da batalha. A
historicidade que nos domina e nos determina é belicosa e não linguística.
Relação de poder, não relação de sentido. A história não tem “sentido”, o que
não quer dizer que seja absurda ou incoerente. Ao contrário, é inteligível e
deve poder ser analisada em seus menores detalhes, mas segundo a
inteligibilidade das lutas, das estratégias, das táticas. (FOUCAULT, 2012, p.
41).
Ou
seja, para Foucault nem a dialética e nem a semiótica poderiam dar conta do que
é inteligível sem levar em consideração esse “olhar oblíquo” para o caráter
violento do funcionamento das relações de poder nas constituições dos sentidos.
Ainda nesse quadro “metodológico”,
Foucault observa como esses problemas de constituição poderiam ser resolvidos.
Para isso, vai abordá-los no interior de uma trama histórica, em vez de
remetê-los a um sujeito constituinte. Sua perspectiva se baseia em uma
analítica que possa dar conta da constituição do sujeito na trama histórica. A
isso ele vai chamar de genealogia. Ou seja, “uma forma de história que dê conta
da constituição dos saberes, dos discursos, dos domínios de objeto etc., sem
ter que se referir a um sujeito, seja ele transcendente com relação ao campo de
acontecimentos, seja perseguindo sua identidade vazia ao longo da história”
(FOUCAULT, 2012, p. 43).
Ao abordar, por exemplo, a questão
da repressão, sem levar em consideração essa perspectiva, ela poderia ser
inadequada para dar conta do que existe justamente de produtor no poder.
“Quando se definem os efeitos de poder pela repressão, tem-se uma concepção
puramente jurídica desse mesmo poder; identifica-se o poder a uma lei que diz
não. O fundamental seria a força da proibição” (FOUCAULT, 2012, p. 45). Para
Foucault, o poder não pode ser analisado somente como uma instituição repressora,
responsável somente por punir. O poder não somente pesa como uma força
punitiva, ele permite, também, o “produzir”. Ele induz ao prazer, a forma saber
e produz discurso.
Deve-se considerá-lo como uma rede produtiva que
atravessa todo o corpo social muito mais do que uma instância negativa que tem
por função reprimir. Em Vigiar e punir
o que eu quis mostrar foi como, a partir dos séculos XVII e XVIII, houve
verdadeiramente um desbloqueio tecnológico da produtividade do poder. As
monarquias da época clássica não só desenvolveram grandes aparelhos de
Estado – exército, polícia, administração local –, mas instauraram o que se
poderia chamar uma nova “economia” do poder, isto é, procedimentos que
permitissem fazer circular os efeitos de poder de forma ao mesmo tempo
contínua, ininterrupta, adaptada e “individualizada” em todo o corpo social.
(FOUCAULT, 2012, p. 45).
Essas novas técnicas seriam muito
mais eficazes e muito menos caras e dispendiosas das técnicas usadas e que se
baseavam sobre uma mistura de tolerância e o castigo.
Assim, para Foucault, a verdade não
poderia existir fora de uma relação de poder. A verdade “é deste mundo; ela é
produzida nele graças as múltiplas coerções e nele produz efeitos
regulamentados de poder” (FOUCAULT, 2012, p. 52). Em cada sociedade há regimes
de verdades e políticas gerais de verdade. Isto é,
Os tipos de discurso que ela acolhe e faz funcionar
como verdadeiros; os mecanismos e as instâncias que permitem distinguir os
enunciados verdadeiros dos falsos, a maneira como se sanciona uns e outros; as
técnicas e os procedimentos que são valorizados para a obtenção da verdade; o
estatuto daqueles que têm o encargo de dizer o que funciona como verdadeiro.
(FOUCAULT, 2012, p. 52).
Na
sociedade, a “economia política” da verdade, segundo Foucault (2012), vai ter
cinco características historicamente importantes. Segue o quadro.
“Economia política”
da verdade (p. 52).
|
|
1ª
Característica
|
A “verdade” é centrada na forma
do discurso científico e nas instituições que o produzem.
|
2ª
Característica
|
Está submetida a uma constante
incitação econômica e política. (necessidade de verdade tanto para a produção
econômica, quanto para o poder político).
|
3ª
Característica
|
É objeto, de várias formas, de
uma imensa difusão e de um imenso consumo (circulação nos aparelhos de
educação ou de informação, cuja extensão no corpo social é relativamente
grande, não obstante algumas limitações rigorosas)
|
4ª
Característica
|
É produzida e transmitida sob o
controle, não exclusivo, mas dominante, de alguns grandes aparelhos políticos
ou econômicos (universidade, exército, escritura, meios de comunicação).
|
5ª
Característica
|
É objeto de debate político e
de confronto social (as lutas “ideológicas”).
|
Foucault vai pensar a verdade como
um conjunto de regras segundo as quais se distingue o verdadeiro do falso e se
atribui ao verdadeiro efeitos específicos de poder. Para o filósofo francês, os
problemas políticos precisavam ser pensados não em termos de
“ciência/ideologia”, mas em termos de “verdade/poder”. Para encerrar a
discussão nessa entrevista, e deixar um pouco mais claro o seu intuito,
Foucault (2012) propõe algumas proposições sobre o que considera a verdade em
sua relação com o poder:
Seis proposições
foucaultianas (p. 54)
|
|
Primeira
proposição
|
Por “verdade”, entender um
conjunto de procedimentos regulados para a produção, a lei, a repartição, a
circulação e o funcionamento dos enunciados.
|
Segunda
proposição
|
A “verdade” está circularmente
ligada a sistema de poder, que a produzem e apóiam, e a efeitos de poder que
ela induz e que a reproduzem. “Regime” de verdade.
|
Terceira
proposição
|
Esse regime não é simplesmente
ideológico ou superestrutural; foi uma condição de formação e desenvolvimento
do capitalismo. É ele que, com algumas modificações, funciona na maior parte
dos países socialistas.
|
Quarta
proposição
|
O problema político essencial
para o intelectual não é criticar os conteúdos ideológicos que estariam
ligados à ciência ou fazer com que sua prática científica seja acompanhada
por uma ideologia justa; mas saber se é possível constituir uma nova política
da verdade. O problema não é mudar a “consciência” das pessoas, ou o que elas
têm na cabeça, mas o regime político, econômico, institucional de produção da
verdade.
|
Quinta
proposição
|
Não se trata de libertar a
verdade de todo sistema de poder – o que seria quimérico à medida que a
própria verdade é poder –, mas de desvincular o poder da verdade das formas
de hegemonia (sociais, econômicas, culturais) no interior das quais ela
funciona no momento.
|
Sexta
proposição
|
A questão política não é erro,
a ilusão, a consciência alienada ou a ideologia; é a própria verdade.
|
Referências
FOUCAULT, Michel. Verdade e
poder. In: FOUCAULT, Michel. Microfísica
do poder. Organização, introdução e revisão técnica de Roberto Machado. 25ª
ed. São Paulo: Graal, 2012.