Orientação: Prof. Dr.
Pedro Navarro
Organização: Alessandro Alves da Silva e Daniela
Polla
__________________________________________
Foucault revoluciona a história
Paul Veyne
__________________________________________
Além disso, um termo, o de "discurso", criou
muitas confusões, digamos logo que
Foucault não é Lacan e também não é semântica; a palavra
"discurso" é tomada por Foucault num sentido técnico muito particular
e, justamente, não designa o que é dito; o próprio título de um de seus livros,
Les Mots et les Choses, é irônico.
(VEYNE, 1998,
p. 138, grifos nossos).
Desconhecíamos
que cada prática, tal como o conjunto
da história a faz ser, engendra o objeto
que lhe corresponde, do mesmo modo que a pereira produz peras e a macieira
maçãs; não há objetos naturais, não há
coisas. As coisas, os objetos não são senão os correlatos das práticas. A
ilusão do objeto natural ("os governados através da história")
dissimula o caráter heterogêneo das práticas (amimar crianças não é administrar
fluxos); daí todas as confusões dualistas, daí, também, a ilusão de
"escolha racional". (VEYNE, 1998, p. 150, grifos nossos).
N
|
o capítulo
“Foucault revoluciona a história”, do livro “Como se escreve a história”, Paul
Veyne nos diz que as práticas e os discursos
determinam os objetos dos discursos
(executivo, idoso, professor, aluno, etc).
Os objetos existem como objetivações que se dão por meio de práticas e
discursos que posicionam estes objetos como objetos de discursos.
As coisas são objetivadas deste ou daquele modo, segundo tal prática ou
discurso, pois “o método consiste, então, para Foucault, em compreender que as
coisas não passam das objetivações de práticas determinadas, cujas
determinações devem ser expostas à luz, já que a consciência não as concebe”
(VEYNE, 1998, p. 163).
Em outras palavras, o que chamamos hoje de executivo, de idoso, de
professor, de aluno, de linguista, dentre tantos outros objetos de discursos,
nada mais são do que resultados de práticas e discursos. Grosso modo podemos
dizer que as práticas e os discursos constroem, discursivamente, por meio de
relações de saber e poder, os seus objetos de discursos.
Para exemplificar como se dá este processo, Veyne nos mostra o exemplo
dos gladiadores:
A intuição inicial de Foucault não é a estrutura, nem
o corte, nem o discurso: é a raridade, no sentido latino dessa palavra; os
fatos humanos são raros, não estão instalados na plenitude da razão, há um
vazio em torno deles para outros fatos que o nosso saber nem imagina; pois o
que é poderia ser diferente; os fatos humanos são arbitrários, no sentido de
Mauss, não são óbvios, no entanto parecem tão evidentes aos olhos dos
contemporâneos e mesmo de seus historiadores que nem uns nem outros sequer os
percebem. Não falemos mais sobre isso por enquanto e passemos aos fatos. É uma
longa história que, graças a meu amigo Georges Ville, vamos ouvir: a da
suspensão dos combates de gladiadores. (VEYNE, 1998, p. 138).
As práticas e os discursos não existem separados da história.
De acordo com Veyne (1998), a explicação histórica, para Foucault, consiste em
tornar explícitas as determinações pelas quais as coisas foram objetivadas por
práticas e discursos.
Os
gladiadores tinham, na Antiguidade, precisamente, a reputação ambivalente das
vedetes do cinema pornô: quando não fascinavam como vedetes de arena, causavam
horror, porque esses voluntários da morte lúdica eram, ao mesmo tempo,
assassinos, vítimas, candidatos ao suicídio e futuros cadáveres ambulantes.
Eram considerados impuros pelos mesmos motivos que as prostitutas: estas e
aqueles são focos de infecção no interior das cidades, é imoral freqüentá-los
porque são sujos, só devem ser tocados com pinças. (VEYNE, 1998, p. 140).
A interrupção dos espetáculos de gladiadores (VEYNE, 1998, p.
139-140), por ter ocorrido após o surgimento dos primeiros imperadores cristãos,
ocasionou numa explicação, por parte de muitos historiadores, pautada numa
lógica equivocada. Eles alegaram, equivocadamente, que o sucesso do
cristianismo ou os avanços do humanitarismo foram as causas desta abolição dos
espetáculos sangrentos dos gladiadores.
Veyne (1998, p. 142) aponta este motivo, em muitas sociedades, para a
suspensão dos gladiadores: “[...] O estado de sociedade não mais defende contra
a lei da selva. Em muitas civilizações, esse medo político prevaleceu sobre a
atração: é a ele que se deve a suspensão dos sacrifícios humanos”.
Entretanto, prevalecia, em Roma, a atração pelo espetáculo sangrento
(VEYNE, 1998, p. 143) sobre o medo político do assassínio legal em plena praça
pública. A maioria do povo romano tinha paz de consciência mediante a aclamação
dos gladiadores (VEYNE, 1998, p. 144) como vedetes, enquanto estes gladiadores
eram, ao mesmo tempo, desprezados como seres impuros. Essa relação paradoxal
entre atração e repulsa acabou dando muito certo em Roma. Nas palavras de Veyne
(1998, p. 145), “posteriormente à Antiguidade, o poder não mais mata para
divertir”.
Não foi o
cristianismo que fez com que os imperadores adotassem uma prática paternal, que resultou na proibição dos gladiadores, mas o conjunto da história (desaparecimento
do Senado, nova ética do corpo que não é um brinquedo, assunto que não, etc.)
que levou a uma mudança de prática política, com duas conseqüências gêmeas: os
imperadores tornaram-se, muito naturalmente, cristãos, já que paternais, e
acabaram com a gladiatura, já que paternais (VEYNE, 1998, p. 147, grifos nossos).
Estes
espetáculos, feitos para divertir o povo romano, eram organizados pelos
próprios poderes públicos (o Estado que deveria proteger contra a natureza
promovia mortes públicas) e esses poderes públicos não acobertavam estas mortes.
Veyne (1998) nos mostra que estas práticas objetivavam o povo romano de tal
modo que, se queriam gladiadores, eles lhes eram oferecidos de bom grado pelos
governantes como espetáculo ao povo.
Diante disso, Veyne (1998, p. 147-148), remetendo ao pensamento de Michel
Foucault, diz-nos que é importante que foquemos a nossa atenção nas práticas e
não nos objetos, pois os objetos foram formados ou construídos por meio de
práticas.
Os objetos
parecem determinar nossa conduta, mas, primeiramente, nossa prática determina
esses objetos. Portanto, partamos, antes, dessa própria prática, de tal modo que o
objeto ao qual ela se aplique só seja o que é relativamente a ela (no sentido
em que um "beneficiário" é beneficiário porque o faço beneficiar-se
de alguma coisa, e em que, se guio alguém, esse alguém é o guiado). A relação determina o objeto, e só
existe o que é determinado. O governado, isso é muito vago e não existe; o que
existe é um povo-rebanho, depois um povo-criança que se mima: o que não é senão
um outro modo de dizer que, em uma época, as práticas observáveis eram as de
guiar, em uma outra, as de amimar (assim como ser guiado não é senão uma
maneira de dizer que, no momento, alguém guia você: não se é um guiado, a não
ser que se tenha um guia). O objeto não
é senão o correlato da prática; não existe, antes dela, um governado eterno
que se visaria mais ou menos bem e com relação ao qual se modificaria a
pontaria para melhorar o tiro (VEYNE, 1998, p. 147-148, grifos nossos).
Tomando como exemplos práticos as
pesquisas desenvolvidas em nosso GEF -
Grupo de Estudos Foucaultianos da UEM,
seria improdutivo pensarmos os nossos objetos de pesquisas desvinculados das
práticas de saber e poder que determinam estes objetos.
Por meio deste conceito de prática vem a crítica ao conceito de
ideologia:
Começamos a compreender
o que é uma ideologia: um estilo nobre e vago, próprio a idealizar as práticas
sob pretexto de descrevê-las; é um
amplo drapeado, que dissimula os contornos desconchavados e diferentes das
práticas reais que se sucedem. Mas cada
prática, ela própria, com seus contornos inimitáveis, de onde vem? Das mudanças
históricas, muito simplesmente, das mil transformações da realidade histórica,
isto é, do resto da história, como todas as coisas. Foucault não descobriu uma nova instância, chamada
"prática", que era, até então, desconhecida: ele se esforça para ver a prática tal qual é realmente; não fala de
coisa diferente da qual fala todo historiador, a saber, do que fazem as
pessoas: simplesmente Foucault tenta falar sobre isso de uma maneira exata,
descrever seus contornos pontiagudos, em vez de usar termos vagos e nobres. Ele
não diz: Descobri uma espécie de inconsciente da história, uma instância
preconceptual, a que chamo prática ou discurso, e que dá a verdadeira
explicação da história (VEYNE, 1998, p. 153-154, grifos nossos).
Vemos, aqui, que a noção de prática se relaciona com as noções de ruptura
e descontinuidade presentes em “A arqueologia do saber” e da história geral ou
serial. Não há uma relação direta entre as palavras e as coisas, assim como não
há uma linha reta entre os saberes e os poderes ao longo da história da
humanidade. Inútil, portanto, remeter o discurso ao sujeito empírico da
enunciação, à sua suposta origem, ao espírito de época, há uma hermenêutica, há
uma vontade de um sujeito.
Veyne (1998, p. 158-159) nos diz que Foucault faz um importante
apontamento aos historiadores, de modo que repensem as suas práticas:
Vocês podem continuar a explicar a história como
sempre o fizeram: somente, atenção: se observarem com exatidão, despojando os
esboços, verificarão que existem mais coisas que devem ser explicadas do que
vocês pensavam; existem contornos bizarros que não eram percebidos. Se o
historiador se ocupa não do que fazem as pessoas, mas do que dizem, o método a
ser seguido será o mesmo; a palavra discurso ocorre tão naturalmente para
designar o que é dito quanto o termo prática para designar o que é praticado. Foucault não revela um discurso misterioso,
diferente daquele que todos nós temos ouvido: unicamente, ele nos convida a
observar, com exatidão, o que assim é dito. Ora, essa observação prova que a zona do que é dito apresenta
preconceitos, reticências, saliências e reentrâncias inesperadas de que os
locutores não estão, de maneira nenhuma, conscientes. [...] Longe de nos convidar a julgar as coisas a
partir das palavras, Foucault mostra, pelo contrário, que elas nos enganam, que
nos fazem acreditar na existência de coisas, de objetos naturais, governados ou
Estado, enquanto essas coisas não passam de correlato das práticas correspondentes,
pois a semântica é a encarnação da ilusão idealista. E o discurso também não é a ideologia: seria quase o contrário; ele é o
que é realmente dito, sem que os locutores o saibam: esses crêem falar de maneira livre, enquanto ignoram que dizem coisas
acanhadas, limitadas por uma gramática imprópria (VEYNE, 1998, p. 158-159,
grifos nossos).
.
Este apontamento é muito importante tanto para historiadores quanto para
analistas de discursos (linguistas de discursos), pois mostra que o discurso é
uma prática que envolve relações de saber e poder que são históricas e marcadas
por descontinuidades e rupturas. Em outras palavras, o discurso pode ser
entendido como algo histórico que precisa de uma materialidade (linguística,
imagética, etc) para se materializar, mas ele não fica preso apenas a estas
materialidades, pois produz efeitos na história, dadas as relações de saber /
poder / subjetivação e dadas as rupturas e descontinuidades entre os saberes e
os poderes. Tampouco este discurso depende, como dissemos acima,
exclusivamente, do desejo de um “adão linguístico” ou da consciência deste
adão.
Cada prática produz objetos, pois “existem, unicamente, múltiplas
objetivações ("população", "fauna", "sujeitos de
direito"), correlacionados e práticas heterogêneas. Existe um grande
número de objetivações, e isso é tudo” (VEYNE, 1998, p. 161). Estas
objetivações dizem respeito aos sujeitos e aos conceitos que são posicionados
como objetos de discursos. Como dito acima, o professor, o aluno, o idoso, o
executivo, dentre tantos outros, são posicionados como objetos dos discursos.
Mais do que apenas posicionados, estes objetos de discursos foram construídos
discursivamente mediante discursos (discursos = práticas).
Não é
preciso passar pela instância de uma consciência individual ou coletiva para
apreender o ponto de articulação de uma prática e de uma teoria; não é preciso procurar em que medida essa
consciência pode, por um lado, exprimir condições mudas e, por outro,
mostrar-se sensível a verdades teóricas; não é necessário colocar-se o problema
psicológico de uma tomada de consciência. (L'archéologie du savoir, p. 254.) A noção de ideologia não é senão uma
confusão gerada por duas operações bem inúteis: um corte e uma banalização.
Em nome do materialismo, separa-se a prática da consciência; em nome do objeto
natural, não mais se vê um rei-pai precisamente, uma gestão de fluxo
precisamente, mas, mais banalmente, o sempiterno governante ou o sempiterno
governado (VEYNE, 1998, p. 163-164, grifos nossos).
As objetivações de diferentes coisas ou objetos variaram e variam ao
longo da história, uma vez que há descontinuidades entre saberes e poderes,
pois
em vinte e
cinco séculos de história, as sociedades objetivaram de maneiras muito diversas
a coisa chamada demência, loucura ou insanidade, para que tenhamos o direito de presumir que nenhum
objeto natural se esconde atrás disso e de duvidar do racionalismo da saúde
mental. [...] é a famosa teoria das
descontinuidades: não existe "loucura através dos tempos", religião
ou medicina através dos tempos (VEYNE, 1998, p. 165-167).
REFERÊNCIAS
FOUCAULT, M. A Vida dos Homens
Infames. In: FOUCAULT, M. Estratégia,
Poder-Saber. 2ed. Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 2006. (p. 203-222)
_____________. A arqueologia do saber. Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 2008.
ROUANET, S. P. “A gramática do
homicídio”. In: ROUANET, S. P.
& MERQUIOR, J.G. (orgs.) O homem e o discurso. A arqueologia de
Michel Foucault. 2ª.ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2008, p. 91-139.
VEYNE, P. Foucault: seu
pensamento, sua pessoa. Trad. Marcelo Jacques de Morais. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2011, p. 01-39.
Muito esclarecedor!
ResponderExcluir