sexta-feira, 22 de junho de 2012

Só há a priori histórico



Orientação: Prof. Dr. Pedro Navarro
Organização: Daniela Polla
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SÓ HÁ A PRIORI HISTÓRICO
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            No segundo capítulo do livro “Foucault: seu pensamento, sua pessoa”, intitulado “Só há a priori histórico”, o autor, Paul Veyne, aborda a questão da concepção histórica preconizada por Michel Foucault, especialmente no que se refere ao a priori histórico, bem como alguns erros que são freqüentes quando se estuda a obra foucaultiana.
            Veyne inicia seu texto contando sobre os “problemas” entre Michel Foucault e os historiadores contemporâneos a ele. Isto porque os outros historiadores tentavam explicar a história relacionando-a com a sociedade e encontravam em Foucault reflexões de um filósofo, discussão de temas como o discurso e de uma história da verdade, os quais não conseguiam compreender. Devido à decepção com os demais historiadores, Foucault reagiu por alguns motivos, de acordo com Paul Veyne, um deles seria a negação de Foucault com relação às explicações causais, já que, para Michel Foucault (apud VEYNE, 2011), “é preciso desfazer-se do preconceito segundo o qual uma história sem causalidade não seria mais história”, devido ao fato de que é possível racionalizar todo um passado sem estabelecer relações de causa. Outra crítica de Foucault contra os historiadores reside no fato de eles terem em mente apenas a sociedade, ela seria a matriz e o final de todas as coisas. Já “para um foucaultiano, ao contrário, a sociedade, longe de ser o princípio ou o termo de toda explicação, precisa ela própria ser explicada; longe der ser última, ela é o que dela fazem a cada época todos os discursos e dispositivos de que ela é o receptáculo.” (VEYNE, 2011, p. 45).
            Importa ressaltar que Paul Veyne foi contemporâneo de Michel Foucault e afirma que o filósofo não era, de fato, tão marginalizado quanto queria crer. De acordo com Veyne (2011), autores como Michelle Perrot, Arlette Farge e Georges Farge apreciavam as obras de Foucault. Outro ponto importante dessa convivência dos dois autores é a contribuição de Veyne para a obra de Michel Foucault, a qual de acordo com o próprio Veyne foi modesta restringindo-se à “confirmar, às vezes, sua informação e a trazer-lhe algum conforto” (VEYNE, 2011, p. 47). Já que Foucault tinha o dom de informar-se sobre uma cultura ou disciplina em poucos meses e só precisava do conforto da simpatia e não negação de Paul Veyne com relação a seu método.
            Esse método foucaultiano permaneceu único, devido aos demais historiadores estarem muito preocupados em escrever a história a sua maneira pra estarem abertos à outra possibilidade. Enfim, o método de Foucault consiste em ir o mais longe possível na busca pelas diferenças entre acontecimentos que a primeira vista parecem pertencer a mesma espécie. Isto porque
ali onde estaríamos tentados a nos referirmos a uma constante histórica ou a um traço antropológico imediato, ou ainda a uma evidência que se impõe da mesma maneira a todos, trata-se de fazer surgir uma singularidade. Mostrar que não era tão evidente assim.” [...]
Não era tão evidente que os loucos fossem reconhecidos como doentes mentais; não era tão evidente que a única coisa que se podia fazer com um delinquente era trancafiá-lo. Não era tão evidente que as causas da doença devessem ser buscadas no exame individual do corpo. (FOUCAULT, apud Veyne, 2011, p.48)
           
            Contudo, “não se pode pensar qualquer coisa em qualquer época” (FOUCAULT, apud VEYNE, 2011, p. 49). Um bom exemplo disso, citado por Paul Veyne, é com relação à observação microscópica, descoberta ainda no século XVIII, mas que deixou de ser encarada como brincadeira somente no século XIX. Os estudiosos acreditavam apenas no que era visível ao olho humano, não ultrapassavam a barreira pra “ver o invisível”, ninguém acreditava no que não podia ver. Essa visão se deve ao fato de que “não podemos pensar qualquer coisa em qualquer momento, pensamos nas fronteiras do discurso do momento.” (VEYNE, 2011, p. 49). No entanto, é claro que um discurso, com seu dispositivo institucional e social só se mantém enquanto a conjuntura histórica e a liberdade humana não o substituem por um outro. Saímos então do aquário (referido no primeiro capítulo do livro) por conta de novos acontecimentos do momento ou porque apareceu um novo discurso que obteve sucesso. Porém,
Se mudamos, então, de aquário, é para nos vermos em um novo aquário. Esse aquário ou discurso é, em suma “o que poderíamos chamar de a priori histórico”. É claro que esse a priori longe de ser uma instância imóvel que tiranizaria o pensamento humano, é passível de mudança, e nós mesmos terminamos por mudá-lo. Mas ele é inconsciente: os contemporâneos sempre ignoraram onde estavam seus próprios limites e nós mesmos não podemos avistar os nossos. (VEYNE, 2011, p. 50)

            Neste ponto do segundo capítulo de “Foucault: seu pensamento, sua pessoa”, Paul Veyne aponta três erros que não devem ser cometidos quando se estuda a obra do filósofo. O primeiro deles: “o discurso não é uma infraestrutura e também não é outro nome para ideologia.” (VEYNE, 2011, p. 50) Já que, “pensando com Foucault”, os discursos são as lentes pelas quais, em cada época, os homens viram as coisas, e essas lentes se impõem tanto aos dominados quanto aos dominantes; para Foucault “o regime de verdade não é simplesmente ideológico ou superestrutural; ele foi condição de formação e de desenvolvimento do capitalismo.” (FOUCAULT, apud VEYNE, 2011, p. 51)
            O segundo erro é cometido quando se toma o discurso como uma infraestrutura no sentido marxista do termo. Essa confusão ocorre porque, quando o filósofo publicou As Palavras e as Coisas, alguns de seus leitores tomaram a entidade que ele designava por discurso como uma “instância material, uma infraestrutura comparada às forças e relações de produção que, em Marx, determinavam as superestruturas políticas.” (VEYNE, 2011, p. 52) Entretanto, o discurso não é uma instância distinta que determina a evolução histórica, trata-se de pensar cada fato histórico como uma singularidade, e o discurso como a forma que tem essa singularidade, ele faz parte desse objeto singular e não é outra coisa senão o traçado das fronteiras históricas de um acontecimento.
            O terceiro ponto é uma crítica feita a Michel Foucault, segundo a qual a teoria do discurso seria errônea e desencorajaria a humanidade por fazer da história um processo anônimo, irresponsável e desesperador. Isto porque se crê que apenas o que é encorajador pode ser verdadeiro e também porque, muitas vezes, se critica um filósofo por ele apenas descrever o mundo sem insuflar nas pessoas valores ou ideais.
            Depois de descrever essas confusões que podem ocorrer quando se fala de Michel Foucault, Paul Veyne passa a falar novamente da noção de dispositivo. O autor cita o discurso da desrazão do século XVII que colocava em jogo todo um dispositivo. Dispositivo esse que se resumiria
a leis, atos, falas ou práticas que constituem uma formação histórica, seja a ciência, seja o hospital, seja o amor sexual, seja o exército. O próprio discurso é imanente ao dispositivo que se modela a partir dele (...) e que o encarna na sociedade; o discurso faz a singularidade, a estranheza da época, a cor local do dispositivo. (VEYNE, 2011, p.54)
           
            Veyne ainda retoma três vocábulos que impressionam os leitores/estudiosos de Michel Foucault: saber, poder, verdade. Segundo Paul Veyne eles tem relações mútuas, sendo que o saber é desinteressado, mas é muitas vezes utilizado pelo poder, o qual também presta auxílio ao saber. Contudo,

Bem entendido, não se trata de erigir o Saber e o Poder como uma espécie de casal infernal, mas de precisar a cada caso quais foram suas relações e, em primeiro lugar, se as tiveram, e por que vias. Quando as têm, eles se vêem num mesmo dispositivo e se auxiliam mutuamente, uma vez que o poder é sábio em seu próprio domínio, o que dá poder a certos saberes. (VEYNE, 2011, p. 55)

            Sobre a verdade Veyne afirma que ela figura entre os componentes do próprio dispositivo. Nas palavras de Foucault (apud VEYNE, 2011, p. 56) “a verdade é deste mundo; ela é produzida graças a múltiplas coerções. E detém efeitos regulados de poder. Cada sociedade tem seu regime de verdade, sua política geral de verdade.” Portanto, para Veyne, seria possível, até mesmo fazer uma história das concepções de verdade. Isto leva a pensar novamente a noção de dispositivo, que misturaria “coisas e idéias (entre as quais a verdade), representações, doutrinas, e até mesmo filosofias, com instituições, práticas sociais, econômicas, etc. O discurso impregne tudo isso.” (VEYNE, 2011, p. 57).
            Dirigindo-se ao final de seu texto, Paul Veyne aborda a noção de ideal-tipo (forjada por Max Weber). De acordo com o autor, na obra foucaultiana existiriam ideais-tipos especialmente aprofundados, os quais buscam a diferença última. Já que, em Foucault, “tratou-se de distinguir os componentes de uma formação histórica qualquer, de um dispositivo, de mostrar os laços entre esses componentes e de fazer aparecer a singularidade do todo.” (VEYNE, 2011, p. 58-59)
            Enfim, sendo imanente aos fatos da história, a todos os dispositivos, dos quais é a apenas a formulação última, o discurso não move a história, é movido por ela e seus dispositivos. Mas, de onde viriam as mudanças dos discursos ao longo dos séculos? “Elas provém simplesmente da causalidade histórica comum e bem conhecida, que move e modifica incessantemente práticas, pensamentos, costumes, instituições, em suma, todo o dispositivo, com os discursos que apenas lhe delimitam as fronteiras.” (VEYNE, 2011, p. 59). Por fim, Veyne lembra que os dispositivos têm por limite, na sua finitude, as fronteiras históricas de um discurso.

REFERÊNCIAS

VEYNE, P. Só há a priori histórico. In: VEINE, P. Foucault: seu pensamento, sua pessoa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011.


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