quinta-feira, 4 de março de 2010

O Enunciado para Foucault e para Bakhtin

(Este ensaio faz parte do artigo intitulado A RESPEITO DE BAKHTIN E FOUCAULT: APROXIMAÇÕES E DISPARIDADES ENTRE OS CONCEITOS DE ENUNCIADO, de Jefferson Voss - membro integrante do Grupo de Estudos Foucaultianos da UEM)
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Afastando-se um pouco do que pressupõem as considerações de Bakhtin e seu grupo acerca da interação verbal, da enunciação e do próprio enunciado, começaremos essa seção apontando o caráter polissêmico do termo enunciado quando utilizado pelas várias correntes de estudos linguísticos que o tomaram, vez ou outra, como objeto de estudo. Segundo o que nos lembram Beth Brait e Rosineide Melo,
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Além do trabalho desenvolvido pelas diferentes pragmáticas, também outros estudos considerados transfrásticos, de diversas procedências, procuram explicar a natureza do enunciado, apresentando-o, em geral, como uma espécie de texto. Outras propostas teóricas, entretanto, vão opor enunciado a texto, como é o caso da Lingüística Textual. Também nas diferentes Análises do Discurso, especialmente as de vertente francesa, o conceito de enunciado vai aparecer, em geral, em oposição a discurso. Não se pode deixar de mencionar que, por vezes, o enunciado é tido como o produto de um processo, isto é, a enunciação é o processo que produz e nele deixa marcas da subjetividade, da intersubjetividade, da alteridade que caracterizam a linguagem em uso, o que o diferencia de enunciado para ser entendido como discurso (2008, pp. 64-5).
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Como se pode notar, a acepção de enunciado não possui um sentido fixo e nem o poderia, principalmente se partirmos da noção de palavra dada por Bakhtin: a palavra está sempre carregada de um conteúdo ideológico ou vivencial, a posição ocupada por aqueles que a sustentam é que lhe dá significação. Portanto, havemos de considerar a noção de enunciado de forma que precisemos a intersecção que ela sofre quando sustentada por interlocutores determinados e operando segundo modalizações específicas. Tomemos o caso em particular de Bakhtin para que, logo adiante, tentemos articular as proximidades e disparidades com a proposta foucaultiana.
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Tendo-se como pressupostos a se considerar o fato de que toda enunciação pressupõe interação verbal entre interlocutores, podemos dizer, a partir de Voloshinov, que o enunciado é o resultado inegável e produto materializado da interação verbal: “O enunciado concreto [...] nasce, vive e morre no processo da interação social entre os participantes da enunciação. Sua forma e significado são determinados basicamente pela forma e caráter desta interação” (VOLOSHINOV apud BRAIT & MELO, 2005, p. 68). Para Bakhtin e seu grupo, não há enunciado que não pressuponha a interação verbal entre indivíduos socialmente organizados.
Outra propriedade inerente ao enunciado é o elo que mantém com aquilo que já foi enunciado e aquilo que há de se enunciar. O enunciado é um elo na cadeia textual quando da formação de redes de memória e da própria evolução das formas linguísticas:
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Todo enunciado – desde a breve réplica (monoléxemática) até o romance ou o tratado científico – comporta um começo absoluto e um fim absoluto: antes de seu início há o enunciado dos outros, depois de seu fim, há os enunciados-respostas dos outros (ainda que seja como uma compreensão responsiva ativa muda ou como um ato resposta baseado em determinada compreensão. (BAKHTIN apud BRAIT & MELO, p. 61)
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Sendo o enunciado esse elo numa cadeia enunciativa, pressupõe-se que haja algo anterior à própria enunciação e que, de alguma forma, estabelece relações com aquilo que é enunciado. O enunciado, pressupõe, então, reiteração de uma memória, seja ela social ou histórica. Permite-se delinear um traçado sobre essa diferenciação entre o que é e o que não é reiterável na enunciação quando, no capítulo 7 de Marxismo e Filosofia da Linguagem, Bakhtin diferencia e relaciona tema e significação. Segundo ele, o tema é, assim como a enunciação, algo individual e reiterável, no sentido de que é definido por condições históricas únicas e não-repetíveis. Por outro lado, a significação é reiterável e idêntica em cada enunciação, ao passo que seria um “aparato técnico para a realização do tema” (BAKHTIN, 1981, p. 129, grifo do original). Há, dessa forma, um sentido anterior à produção enunciativa e que está pressuposto na realização do ato de fala. Contudo, não podemos deixar de esclarecer que essa relação entre tema e significação não atesta a subordinação de um acontecimento linguístico a uma estrutura que define seu campo histórico de significação. Bakhtin coloca a significação como um estágio inferior da capacidade de significar, uma vez que somente o tema significa de maneira determinada, ou seja, não há uma determinação do tema pela significação. Para Bakthin,
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Não há nada na composição do sentido que possa colocar-se acima da evolução, que seja independente do alargamento dialético do horizonte social. A sociedade em transformação alarga-se para integrar o ser em transformação. Nada pode permanecer estável nesse processo. É por isso que a significação, elemento abstrato igual a si mesmo, é absorvida pelo tema, e dilacerada por suas contradições vivas, para retornar enfim sob a forma de uma nova significação com uma estabilidade e uma identidade igualmente provisórias (BAKHTIN, 1981, p. 136).
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Como é possível se notar por essa citação, Bakhtin enfatiza a instabilidade e evolução das formas linguísticas quando imersas num contexto social. Para Bakhtin (1981), o enunciado tem como base um campo de significação comum à língua, mas rompe com essa significação e, por meio do tema, resignifica a palavra no diálogo.
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Outro trecho da obra de Bakhtin que toca nessa questão de um a priori histórico que se manifestaria na produção do discurso aparece em suas colocações a respeito do caráter responsivo da enunciação. Bakhtin afirma que “[...] Toda enunciação, mesmo na forma imobilizada da escrita, é uma resposta a alguma coisa e é construída como tal” (Ibidem, p. 98), ou seja, pressupõe outras enunciações que a constituem, e acrescenta: “[...] Toda inscrição prolonga aquelas que a precederam, trava uma polêmica com elas, conta com as reações ativas da compreensão, antecipa-as” (Ibidem, p. 98). Dessa forma, o enunciado – produto material da interação verbal e não reiterável – implica memória e atualidade numa rede de sentidos em evolução constante. Apesar de ser constituído a partir de uma memória (numa ação responsiva), o tema do enunciado é assegurado pelas condições de enunciação e pelos interlocutores envolvidos, ou seja, o enunciado possui univocidade histórica e não pode ser reiterado completamente, pois cada enunciação caracteriza um contexto de interação verbal específico e produz um enunciado único.
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Partindo-se dessa propriedade não reiterável do enunciado, tendo em vista a própria univocidade da enunciação, tentemos inscrever o método arqueológico de Foucault nos entremeios de nossa discussão. Primeiramente, é mister que toquemos nessa questão do caráter único e não-repetível do enunciado, uma vez que ela se encontra, de certa maneira, mas não da mesma forma, também presente na sistemática foucaultiana. Ao propor uma explanação do conceito de enunciado, Foucault diz que
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Pode-se [...] ter dois enunciados perfeitamente distintos que se referem a grupamentos discursivos bem diferentes, onde não se encontra mais de uma proposição, suscetível de um único e mesmo valor, obedecendo a um único e mesmo conjunto de leis de construção e admitindo as mesmas possibilidades de utilização (FOUCAULT, 2008, p. 91).
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Em outras palavras, uma mesma proposição, em sua forma material, pode comportar mais de uma significação e definir enunciados diferentes no que concerne à função enunciativa desempenhada. Em alguma medida, pode-se, nesse ponto, traçar um paralelo entre esse pensamento foucaultiano e a diferenciação bakhtiniana entre tema e significação. Aquilo que para Bakhtin seria a significação (aparato tecnológico reiterável) definiria, para Foucault, a materialidade de uma proposição, a base significativa comum. Já o enunciado propriamente dito estaria, em Foucault, no domínio do que Bakhtin definiu como tema (algo individual e não-reiterável).
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Contudo, Foucault (2008) define a materialidade como uma propriedade do enunciado e não como o enunciado produto da interação verbal. Diante de um texto, por exemplo, Bakhtin o chamaria de enunciado por este ter sido produto da interação verbal entre interlocutores diante de um universo social estabelecido; já Foucault o chamaria de enunciado por ali podermos evidenciar o desempenho de uma função enunciativa inscrita numa materialidade textual. A problemática levantada sobre o objeto é outra e o objeto de análise em si também o é.
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Ao tentar definir o enunciado, Foucault começa por distingui-lo daquilo com o qual se pode confundi-lo. Na terceira parte de A Arqueologia do Saber (FOUCAULT, 2008), no capítulo intitulado Definir o Enunciado, Foucault distingue o enunciado de três outras unidades com as quais se poderia eventualmente compará-lo: a proposição, a frase e o speech act (ato de fala). Para o filósofo francês, não se deve resumir o valor do enunciado a uma estrutura proposicional, dado que uma mesma proposição pode abarcar enunciados distintos conforme o contexto enunciativo em que foi expressa. Nem mesmo se pode querer equiparar enunciado e frase já que, segundo Foucault, há muitos contextos em que não se exige uma simples frase para que o enunciado ocorra, como em uma tábua de logaritmos ou em uma tabela periódica. Tampouco se deve tomar o enunciado em uma relação sinonímica com um ato de fala, apesar de Foucault admitir ser esta a hipótese que, à primeira vista, parece mais verossímil. De acordo com o autor, um ato de fala ilocucionário pode exigir a existência de dois ou mais enunciados; além disso, os enunciados são condição de existência dos próprios atos de fala. Ao final do capítulo, Foucault conclui negando a unidade do enunciado:
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[...] Não é preciso procurar no enunciado uma unidade longa ou breve, forte ou debilmente estruturada, mas tomada como as outras em um nexo lógico, gramatical ou locutório. Mais que um elemento entre outros, mais que um recorte demarcável em um certo nível de análise, trata-se, antes, de uma função que se exerce verticalmente, em relação às diversas unidades, e que permite dizer, a propósito de uma série de signos, se elas estão aí ou não (2008, p. 98).
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Essa negação à unidade do enunciado comprova a preocupação de Foucault em não tentar definir uma unidade passível de ser recortada para análise, uma vez que o processo analítico deveria levar em conta aquilo que é exterior e constitutivo da função enunciativa. Foucault admite ser o enunciado uma função de existência que pertence ao signo, o que lhe exige, de certa forma, uma materialidade específica, mas não entende o enunciado como um produto materializado ou como um elo na produção textual, senão como uma função enunciativa que precisa ser descrita levando-se em consideração seu exercício, suas condições de existência, as regras que a controlam e o campo em que se realiza (2008, p. 98).
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Nesse ponto de nossa discussão, é interessante que pontuemos as preocupações díspares as quais envolviam ambos os filósofos, Bakhtin e Foucault, quando da conceituação do termo enunciado. De um lado, Bakthin e seu grupo tentavam delinear uma corrente de pensamento linguístico-filosófico que priorizasse o estudo da enunciação enquanto produto vivo da interação entre indivíduos historicamente situados, isso a fim de mostrar como a palavra (discurso) não estava fadada somente à produção subjetiva ou à regência de uma estrutura objetivada. Por outro lado, a preocupação de Foucault era a de descrever como a circulação de saberes em uma sociedade abre margens à produção/transformação dos conhecimentos que delineiam um campo epistemológico. Para Bakthin (1981), o enunciado é prioritariamente material, já que aparece como produto da enunciação; o que define o enunciado são as condições históricas que definiram a enunciação da qual é produto: os outros enunciados aos quais responde, os interlocutores (reais, virtuais ou superiores) envolvidos na interação verbal, etc. Para Foucault (2008), no entanto, o desempenho da função enunciativa exige uma materialidade, mas o enunciado não é em si essa materialidade, uma vez que uma mesma materialidade pode pressupor uma gama de enunciados atuantes. Logo, o enunciado é, para Foucault, a materialização de uma ordem que age sobre as palavras e as coisas, lhes imprimindo um movimento particular na história; por isso a necessidade de descrever-lhe uma função (a função enunciativa) que aponte para os porquês de sua existência material.
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O desempenho da função enunciativa exige, de acordo com Foucault (2008), um referencial como princípio de diferenciação (e não como um objeto), um sujeito enquanto posição que pode ser ocupada sob certas condições, um campo associado que é um domínio de coexistência para outros enunciados (e que não é, diga-se de passagem, um contexto real de formulação, ou uma situação na qual foi articulada uma proposição) e uma materialidade enquanto um status ocupado em certas possibilidades de uso ou de reutilização (FOUCAULT, 2008, p. 99-119).
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Nota-se, de antemão, um caráter menos pragmático que o bakhtiniano nessa definição dada por Foucault ao desempenho da função enunciativa. Se, para Bakhtin, é relevante pensar, por exemplo, no contexto real de formulação enquanto universo social que define a interação verbal entre os interlocutores, para Foucault o que importa é a análise da relação entre os enunciados num domínio de coexistência. Enquanto Bakhtin vê o surgimento da palavra em função do interlocutor (toda palavra serve de expressão a um em relação ao outro), Foucault pensa na existência da palavra como efeito de saberes postos em circulação numa dada época. A preocupação de Bakhtin era mesmo a de traçar uma teoria da linguagem que superasse parte do pensamento estruturalista. Já Foucault queria entender como se formam os saberes que dão emergência a esses trajetos teóricos que chegam a engendrar o que, depois, vem a se chamar estruturalismo ou qualquer outra coisa.
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(Jefferson Voss - Mestrando em Letras pelo Programa de Pós-Graduação em Letras da UEM)
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6 comentários:

  1. Acho agressivo o que colocam quanto a roubar informações, pois realmente as informações pertencem a alguém? Entendo que devemos sempre informar a fonte, mas chamar o seu leitor de ladrão não é muito agressivo?

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  2. O Enunciado para Foucault e para Bakhtin
    (Este ensaio faz parte do artigo intitulado A RESPEITO DE BAKHTIN E FOUCAULT: APROXIMAÇÕES E DISPARIDADES ENTRE OS CONCEITOS DE ENUNCIADO, de Jefferson Voss - membro integrante do Grupo de Estudos Foucaultianos da UEM)
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    Afastando-se um pouco do que pressupõem as considerações de Bakhtin e seu grupo acerca da interação verbal, da enunciação e do próprio enunciado, começaremos essa seção apontando o caráter polissêmico do termo enunciado quando utilizado pelas várias correntes de estudos linguísticos que o tomaram, vez ou outra, como objeto de estudo. Segundo o que nos lembram Beth Brait e Rosineide Melo,
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  3. Que besteira, recortar um texto e salvá-lo num arquivo pode ter vários motivos e signifidados, inclusive o de que vale a pena guardar para consultá-lo com maiaor facilidade, ou levá-lo para fazer análise comparativa e aprofundar nas suas informações. Para isto servem os textos publicados: objetos de estudos que devem ser explorados como objeto arqueológico, pois ele é em tese parte do ser humano que precisa ser estudado.

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  4. Bem, para início, as informações não são suas, haja vista, que foram reproduzidas por outros, tais como: Bakhtin, Brait, Mello, entre outros. Vocês roubaram as informações (mesmo que citando as fontes) de outros pensadores e teóricos?

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  5. Amigo, se você quer algo estável e sem compartilhar as informações, nem coloque na internet.

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  6. Roubar informações? Com esta observação, tem-se incontestável falta de maturidade acadêmica e, sobretudo, autoral.

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